05-06-2011
Referências
Como as mulheres são engraçadas na louca perseguição do ideal de amor-paixão romântico. Adoro colecionar histórias de suas aventuras e histórias insensatas. Divirto-me relembrando minhas próprias peripécias e principalmente os relatos das amigas que me fazem rir até meus pequenos seios não siliconados farfalharem.
Sei que há uma considerável verdade na assertiva de que mulheres nunca são verdadeiramente amigas, de que todas são em menor ou maior grau potencialmente rivais no universo das relações de amor e de conquista, muito embora eu seja uma entusiasta defensora da união feminina em prol não da dominação sobre o homem, mas da construção de uma nova feminilidade e de relações amorosas mais livres, mais plenas, menos marcadas por dramas, rivalidades, futilidades, pequenezas e picuinhas. E não raro me surpreendo, ao ouvir esses relatos cômicos, a antever os sinais de uma promissora solidariedade.
Uma dessas histórias que coleciono diz respeito a uma amiga que por anos foi casada com um suiço. Quando se separaram, ele arrumou uma namoradinha, nos dizeres de minha amiga – uma dessas garotas de ponta de rua, moradora lá da vila caixa-prego, representante típica do visual e jargão periferia.
Logicamente, temos que relevar a natural inclinação das mulheres em geral para depreciar suas sucessoras ou rivais, mas creio que ela não faltou completamente com a verdade. Pois a nova namorada de seu marido, um belo dia, ligou para a casa de minha amiga, apresentou-se como a nova mulher do dito cujo e informou que havia telefonado “para pedir referências” sobre o rapaz. Queria saber se ele era boa pessoa, se era um pouco nervoso. Minha amiga confirmou que sim, ele era um tanto irascível, mas não a destratou, apenas cortesmente lhe indicou que esclarecesse suas dúvidas com o próprio.
Outra amiga recebeu no Orkut um pedido para adicionar a atual noiva de seu ex-novo. Boa alma e sobretudo muito curiosa, como de resto também costumam ser as mulheres, aceitou adicioná-la. A atual noiva, que abandonou casa e emprego e em outra cidade para morar com o rapaz no fundo de uma oficina mecânica, queria saber se ele costumava ser estúpido como tinha sido com ela ou se ela, a pobre, é que estava errada em seus melindres de fêmea sentimental.
Minha amiga também não a destratou, antes relatou episódios de grosseria em que ele esteve envolvido. Ou seja, deu-lhe as referências solicitadas. E, claro, cometendo uma pequena crueldade feminina, mostrou-me o perfil na rede social, em que a noiva infeliz colocara fotos em que o rapaz havia sido transformado em um borrão verde. Rimos até mais não poder.
E um terceiro relato que muito me causou riso foi o de um rapaz, cuja namorada, por ocasião de seu aniversário, organizou uma festa surpresa e o presenteou com um vídeo em que havia generosos depoimentos de quem? De nada menos do que suas ex-namoradas. Com essa história ri até as bandeiras se despregarem. A maioria das ex aceitou gravar, exceto uma ou outra mais ressentida ou avessa à exposição sentimental do passado. E certamente o rapaz tem em suas mãos um valioso material que poderá usar com suas futuras conquistas, referências prontinhas em suporte digital.
Mas o que para mim todas essas histórias têm em comum é a inclinação das mulheres por tomar atitudes insólitas e às vezes um tanto insensatas, no afã de manter suas relações amorosas ou mesmo de afastar as ex ou supostas rivais. Ligam, fazem ameaças ostensivas ou veladas, vasculham o passado das outras, e até pedem referências, tentando estabelecer um tipo qualquer de vínculo, de cumplicidade ou até de amizade.
No fundo, porém, desses gestos antevejo a semente de uma nova possibilidade, até mesmo de solidariedade entre as mulheres que supervalorizam as relações amorosas e que por séculos sofreram e toleraram maus tratos e uniões insatisfatórias. Quem sabe seja mesmo uma boa ideia ligar para ex para saber referências sobre o rapaz que se acaba de conhecer, afinal, se assim agimos para contratar uma empregada, por que não o faríamos para nos informar sobre alguém que colocaremos dentro de nossa vida? Leiam-se aqui novas risadas.
13:17 | Permalink | Comentários (4) | Tags: histórias agudas e crônicas, mulheres, amor
10-04-2011
A classe dos retardatários
Há algum tempo, escrevi uns versos assim: “Te conhecer me vez ver que chego atrasada sempre/ E que meu amor por você nasceu sol poente”. Fatos e fases que motivaram esses versos à parte, ultimamente ando pensando que esse negócio de chegar tarde, atrasada sempre, é um mal de família, ou talvez não tanto um mal, mas uma característica minha e dos meus.
Num tempo em que todos têm pressa, em que a juventude é tão valorizada e obsessivamente cultivada, em que pessoas muito jovens realizam tantas coisas, uns atingem aos vinte poucos anos o sucesso profissional, outros se casam e têm filhos ainda tão verdes, muitas vezes fico pensando que as coisas para mim acontecem tarde. E há alguns dias, conversando com uma amiga e uma prima que andaram participando da tal Constelação Familiar, um tipo de terapia que identifica padrões repetitivos de comportamento ao longo de gerações, comecei a observar que em minha família, alguns padrões se repetem, que todos ou quase todos são um pouco “tardios” ou retardatários.
Minha mãe mesmo costumava dizer que se casou tarde, moça velha para a época dela. Tinha 26 anos quando se casou com meu pai, num tempo em que as moças costumavam se casar com 15 anos, muitas vezes antes. Meu pai também tinha 26 e eu, filha temporã, caçula de quatro irmãos, só fui nascer quando minha mãe já estava com 37.
Meu pai também era considerado um “tardio”. Muito lento, excessivamente calmo, nos gestos e na maneira de falar, sempre foi alvo de piadas e brincadeiras dentro da família dos Nania, uma família de fala mansa e mansa em essência. Vagaroso, dono de um ritmo todo seu, às vezes enternecedor e divertido, outros exasperante, estava sempre plantando a roça, quando os outros estavam colhendo a lavoura. A exacerbação da tranquilidade. Ou seja, frequentemente perdia o tempo certo de plantar e sofria depois com os males do clima: chuvas ou sol em demasia.
Mas como dizia ele mesmo ou um tio, não sei ao certo: uns almoçam mais cedo, outros almoçam mais tarde, mas no fim todos almoçam. Maneira bem humorada de encarar a constatação de que cada um tem seu tempo, seu ritmo. Meu pai, com sua calma inigualável, é acima de tudo um otimista. Um otimista que a vida toda nos fez chegar atrasados às festas. Era otimista demais para acreditar que elas já pudessem estar terminando.
E observando agora essa característica, vejo que ela se repete com outros da família. Tenho, por exemplo, um irmão, que, viúvo, pai de dois rapazes já com mais de vinte anos, agora, já com 50 anos, casou-se de novo e vai ser pai novamente de uma menininha. Meu outro irmão, também beirando os 50, decidiu voltar para a faculdade de Engenharia Civil, que abandonou quando bem mais jovem. E eu mesma acabei por ser mãe quase com a mesma idade que minha mãe tinha quando me gerou.
Às vezes não é muito fácil lidar com isso. É comum eu ter a sensação de que pertenço à classe dos atrasados. Quando eu ainda cursava o primário, era comum ter nas escolas uma sala em que ficavam os alunos mais velhos, que entraram tarde na escola ou que haviam sido reprovados. Eram os repetentes, os atrasados. Por outro lado ou talvez para confirmar minha sensação de retardamento, não me sinto jamais com a idade que tenho, já me aproximando dos 40. Vejo-me fazendo coisas e descobertas próprias dos bem jovens. Não me dou mais do que 25, mentalmente e em vivência, claro. Sinto que tenho muito ainda por fazer, por realizar. E o prazo de uma vida será suficiente para um retardatário? Retardatário ou retardado?
Espero que sim e, para reforçar minhas esperanças, lembro que em minha família, se não somos precoces, se não somos pessoas à frente de nosso tempo (talvez estejamos sempre aquém dele), somos longevos. A longevidade tem sido até agora uma característica predominante, ao menos no ramo paterno. As grandes orelhas da maioria dos Nania o atestam. É crendice popular dizer que quem tem orelhas grandes vive muito. Vivem muito justamente porque são vagarosos? E são vagarosos justamente porque custa carregá-las? Ou será porque, com orelhas tão grandes, ouvem muito, ouvimos demais, ouvimos tanto que ficamos confusos e demoramos excessivamente a tomar decisões?
P.S: Minha irmã, que a seu modo é também uma retardatária, não concorda comigo, porém. Não acredita que se trata de um padrão de família, mas muito mais de um fenômeno de nossa época. As pessoas estão se casando mais tarde, tendo filhos mais velhas, saindo tardiamente da casa dos pais e, claro, vivendo mais. Também faz sentido. Quando Balzac escreveu sua "Mulher de 30 anos", não se ousava pensar que uma mulher pudesse amar após os 20. Hoje, como já ouvi por aí, as quarentonas de agora são as balzaquianas das antigas gerações.
11:40 | Permalink | Comentários (0) | Tags: histórias agudas e crônicas, terapia
03-04-2011
Aos solitários, as batatas! Aos adoentados, as cebolas!
Você anda adoentado, triste, deprimido? Já experimentou a terapia da cebola? Não, ela não consiste em cortar cebolas, numa cerimônia exótica, para invocar o deus adorado do choro, seu sumo de ácido sulfúrico como um pretexto para fazer verter as lágrimas represadas. Se bem que isso pode ser uma boa, vá lá. Às vezes a nossa angústia está trancada e só mesmo um filme daqueles bem melosos, uma velha canção ou até mesmo uma cebola bem descascada e bem fatiada para nos fazer abrir as comportas.
A terapia consiste simplesmente em colocar na cabeceira da cama, junto com o livro da ocasião, a versão preferida do evangelho e quiçá o ansiolítico (como se batiza hoje o antigo calmante ou sonífero), um prato com uma cebola cortada.
Noite passada, resolvi experimentar a terapia cebolística, seguindo indicação de uma psicóloga com que me consultei. Há muito tempo sofro com gripes constantes, dores de garganta e tosse. É como se eu nunca me restabelecesse completamente. Até cheguei a dizer, para horror dos especialistas em otimismo e em programação neurolingúistica, que um dia é da gripe, outro do resfriado, um da doença, outro da convalescença. E nem é preciso ser imunologista, psiquiatra ou psicólogo para supor que esse estado deriva de um processo de estresse que se agravou nos últimos meses. Au revoir, qualidade de vida e imunidade! Ou até breve!
Segundo a psicóloga, a cebola “chuparia” todas as bactérias ou vírus que eventualmente me acompanhassem. O fato é que depois de já ter tentado alguns tratamentos, entre eles uma vacina, um lizado bacteriano, que deduzo, seja um bombardeio de bactérias para acordar as defesas do organismo, resolvi experimentar a terapia sugerida, pensando que se bem não fizer, mal não vai haver. Exceto, claro, o inconveniente do odor, que mal faria ter ao lado da cama, no criado surdo-mudo e sem olfato, um prato de cebolas cortadas em rodelas?
Surpreendentemente, posso dizer, malgrado a catinga, tive uma noite bem mais agradável dos que as anteriores. Efeito certamente da própria sessão com a psicóloga, ocasião em que desaguei um rio inteiro. Quando terminei a sessão, ela, aliás, me disse, “talvez você melhore agora que falou e chorou”. Realmente: a alma está menos congestionada. A garganta inflamada eram talvez também palavras entaladas? E o rio de secreções eram lágrimas represadas? E como cantaria Roberto Carlos, tantas, tantas emoções transmutadas em catarro? Mas ao final deste texto volto a falar disso, porque afinal a cura do corpo e da alma é, muitas vezes, uma e a mesma coisa.
Poesia terapêutica - O fato é que acordei me sentindo um pouco melhor e não pude deixar de rir ternamente ao contemplar o prato de cebola ao lado da cama. Achei-o deveras poético. Poético, porque sempre vejo poesia no ambiente e nos ritos domésticos, nos legumes, nos utensílios de cozinha, nas especiarias. Talvez por isso mesmo, em priscas eras, escolhi para meu blog o nome de Almofariz. Não sou muito chegada a cozinha, mas para preparar uns antepastos de poesia e não para cozinhar, ela bem serve. Inspirada no mundo dos cuidados e descuidos domésticos, dos afazeres e dos não fazeres, dos zelos e dos desmazelos, escrevi o que considero uma das minhas frases mais geniais, com perdão do exagero e da nenhuma modéstia: “solidão é quando as batatas brotam na geladeira”.
Pois as cebolas, como as batatas aos vencededores (ou serão perdedores, solitários e prisioneiros de calabouços e convés de navios?), sempre dão e deram, além de saborosos e estéticos pratos, interessantes histórias e metáforas: as cebolas, as réstias e dentes de alho, a pimenta do reino, com suas aventuras de navegantes em busca de especiarias. Cravos da índia, nem se fale.
No livro de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, há um trecho em que a personagem Grúchenhka conta uma antiga lenda russa. Um anjo tentar evitar que uma mulher muito má afunde no lago do inferno e, para isso, lembra a Deus que um dia ela teve um gesto de bondade. Arrancou da horta uma cebola e deu a um mendigo. Deus manda que o anjo pegue tal cebola, dê a mulher para que ela a segure e assim se salve do poço. O anjo a puxa com cuidado, mas outros pecadores se agarram a ela para se salvar também. A pecadora, porém, lhes dá pontapés, dizendo que ela é que está sendo salva e não eles. Assim, a cebola se parte e ela acaba se afundando no lago do inferno, para tristeza do anjo.
Sei que aparentemente essa história nada a tem a ver com a terapia da cebola, exceto talvez pelo fato de que associação com o inferno, com o demoníaco é compreensível, já que o ácido sulfúrico deriva do enxofre e convenhamos: cebola, vai feder assim lá no inferno! Mas nesse nosso tempo de hiperlinks tão facilitados, fiquei tentada a sair navegando à procura de associações, de histórias relativas a cebolas, que se não comprovassem a eficácia da excêntrica terapia, ao menos me mostrassem de onde que é que a psicóloga tirou isso e, claro, que dessem livre curso a minhas divagações poéticas. Encontrei coisas muito interessantes, relatos sobre as propriedades terapêuticas das cebolas, seu uso milenar por curandeiros, referências a seus poderes para desintoxicar o sangue, propriedades antibacterianas e antissépticas.
As tumbas egípcias estariam repletas de pinturas de cebolas. Eles, aliás, teriam o costume, ao fazer uma promessa, de colocar a mão sobre uma cebola. Antigos escritos hebraicos revelariam que teriam sido um dos alimentos pelos quais os judeus ansiavam após a saída do Egito. Alexandre, o Grande, também teria fornecido enormes quantidades de cebola a suas tropas para fortalecê-las antes das batalhas.
Encontrei também, num site sobre terapia com florais, relatos de gente que teria evitado contrair uma gripe que arrasava populações porque tinha o hábito de espalhar cebolas pela casa, e mesmo a narrativa de uma mulher que teria se curado de pneumonia grave, com auxílio do curioso método. A mulher acordou melhor e a cebola, enegrecida.
Todos esses textos acabaram por me fazer crer que a terapia pode ter realmente alguma eficácia. Ainda que seja o efeito placebo, tanto faz. O que importa é o bem que ela nos traz. De qualquer forma, colocar aquele prato de cebola ali ao lado da cama, acordar com ele, temperou meu dia, fez-me pensar que às vezes pequenos gestos, recheados de simbologia, são realmente terapêuticos.
De algum modo, o gesto poético-terapêutico e a própria sessão com a psicóloga me fizeram ver o quanto em mim está obstruído, que necessito livrar-me daquilo que me intoxica, dos micróbios, das más lembranças que me envenenam. Não adianta simplesmente tentar negar sua existência, esquecê-los, silenciá-los, pois eles continuam ali, ocultos, trabalhando entre sangue e trevas.
De certa forma, me agarrei a tal cebola como a uma tábua de salvação e transferi para ela, para estas divagações, para este texto, ao menos parte daquilo que me adoecia. E usando a lenda russa como lição, resolvi compartilhar, afinal ninguém pode se curar, ao corpo e à alma, e se salvar, claro, sozinho.
P.S: Se for tentar essa terapia, não aproveite a cebola para preparar o almoço. Algo me diz que não é uma boa idéia.
09:55 | Permalink | Comentários (1) | Tags: histórias agudas e crônicas, melancolia, terapia